terça-feira, 16 de março de 2010

A face rubra


Tenho, há muito, a íntima convicção da morte. Naturalmente, esta disposição é comum a todos os homens. Ocorre, porém, que, em mim, ela assume proporções infindáveis. Persegue-me materializado-se em sensações tão íntimas, familiares, profundas que meu âmago é todo um torpor de coisas fúnebres. Por certo a morte é uma dádiva diária, cotidiana, pertencente apenas às coisas urgentes da existência concreta. Não é a morte que está nos poemas de Byron, nas tabernas de Álvares de Azevedo, nas telas de Delacroix, nos contos de vampiros, nos túmulos. O imaginário popular esculpio a morte de um modo muito nefasto. E o ideal cristão a dicotomizou da vida. Não, ela não usa máscara mórbida, caveiras insinuantes, não há manto cinza-escuro e garras de águia. A morte é um dado tão ingênuo, tênue, delicado que parece tornar-se tangível, escorrendo entre os dedos, estagnando-se no ar, expandindo-se no peito. E, ao menor suspiro, o mais involuntário alívio nos consome às entranhas, tornando a máquina molecular uma obsolência anunciada no instante último. A morte nos condena à obsolência da espécie – não à obsolência do tempo. Nunca se morre jovem demais. Jamais se padece demasiadamente velho. Ela sempre vem, como disse Quintana, “pontualmente na hora incerta”. Os túmulos, sim, envelhecem. O morto talvez passe. Ter morrido não passa nunca. E como não pressenti-la? É ela que está lá, “vestida de cetim” no cruzar de qualquer esquina, no descuido do transeunte, na resignação e nos passos anunciados. Ela está lá, lívida e intensa nos bancos dos namorados, nas juras de amor, nas cartas de adeus. É ela que prepara o banho, que te serve o café, que te vela o sono, que te impregna o lençol, que te espia na janela. Ela que te move a aurora e deseja teu regresso no crepúsculo. Por certo, senhores, a morte é o mais cotidiano dos eventos imortais.

Um comentário:

  1. Adorei professor ... tudo a ver comigoo... tenho um pouco a ver nesse pensamente de morte e etc...'

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