sábado, 17 de julho de 2010

Dias Anoitecidos

Por certo hoje amanheci crepusculado. Tem dias que é assim, a gente amanhece anoitecido. Talvez porque toda a existência seja, em verdade, uma longa noite, intervalada por alguma fresta tímida de sol. A verdade é que a escuridão é bem mais extensa que a luz. Quem sabe eu fique aqui, na cama, observando, passivo, a vida lá fora. Quem sabe ouvir música, ler um livro, preparar um café. Quem sabe eu não faça nada, e fique assim, como estou, inerte e puro, imóvel em minha noiticidade. Mas não acenderei a luz. Já disse, não acenderei a luz. Embora seja manhã, faz escuro em meu quarto. As sombras nas paredes formam estranhas figuras. Busquei imaginá-las, supô-las, buscar algum traço reconhecível, à maneira de como fazemos com as nuvens. Por um momento tive a impressão de que eram monstros, aqueles que permeavam meus medos ingênuos de quando eu criança. Pensei em pessoas distantes. O que andará fazendo a tia do primário? A merendeira da creche. Meu avô que jamais conheci. Há certamente muita angústia ver pessoas anônimas. Elas parecem tão distantes e disformes. Tímidas ou evasivas formam uma massa heterogênea na multidão. As filas, as estações de trem, os comícios, insinuam anônimos imprevisíveis. Haverá algum terrorista? Um pedófilo, um deputado, uma prostituta. A massa nivela a moral. Como não ter piedade de todas aquelas faces anoitecidas? Sim, anoitecidas como a minha agora, pensando tudo isso. As pessoas anônimas assemelham-se às sombras que minhas paredes revelam. Julguei que todas elas estavam aqui, no quarto, fazendo mais sombra. Mas em dias anoitecidos é preciso solidão. Uma solidão necessária, tal como a do parto, ou da morte. Afinal, chegamos ao mundo do mesmo modo que partimos: sozinhos. E sozinho, anoitecido, acordei hoje. Juntarei as pálpebras e dormirei, resoluto que acordarei a noite, amanhecido.

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