sábado, 26 de fevereiro de 2011

FILOSOFIA : da certeza a suspeita, da suspeita ao salto


De certo modo a história da filosofia é a história da suspeita e uma metáfora do salto. Podemos compor a filosofia como a história de um pensamento que salta, que busca longitudes, que transcende limites conceituais e procura romper o habitual, as certezas mal formuladas, os dogmas da existência, o comum; instaurando, com isso, uma nova visão acerca das coisas ou, para ser mais exato, uma nova interpretação dos eventos do mundo. Toda a filosofia é uma aventura da suspeita e, assim, uma aventura do homem em busca de explicação de si mesmo e dos fatos que o compõem como ser. Sob este prisma não há outra negação da ação do filosofar senão o comodismo. Um pensamento que suspeita é um pensamento ativo, disposto sempre para o salto e para o encontro com as paragens mais ocultas do ser das coisas – a busca que é, por si mesma, ação, pragmatismo solene e positivo, negação irremediável do cômodo. Todavia não basta que o pensamento filosófico seja antagônico ao comodismo, é necessário tornar-se ele mesmo incômodo.

Um pensamento filosófico genuíno, além de suspeitar das estruturas aparentes do mundo, precisa incomodar. Daí entendermos porque a popularidade é tão perigosa para a filosofia. Quando um filósofo torna-se a voz unânime de um povo ou de um tempo, um dos dois é falso, ou há, em ambos, uma incompreensão recíproca. Não há a filosofia de um tempo, assim como não há o filósofo de um tempo; o que há são filosofias e filósofos, suspeitas diversas, saltos muitos, interpretações várias. E, naturalmente, há uma razão de ser para tudo isso: é a instauração da suspeita contra a certeza.

Reconhecemos que não há nada tão incômodo quanto questionar aquilo que nos parece, desde sempre, correto, certo, irrefutável. Dificilmente nos perguntamos, com honestidade, quando passamos a ter certeza de alguma coisa, quando tomamos essas certezas como algo irrefutável, quando, afinal, passamos a crer naquilo que julgamos realmente acreditar. A certeza é algo tão determinante que, nós, humanos, muitas vezes, morremos por ela, pois julgamos a vida sem sentido se a perdemos. Aliás, perder a certeza de certas coisas nos parece, no fundo, a própria constituição da morte. Como cremos que é a certeza que dá sentido, firmamos a convicção que, sem certeza, não há sentido, inclusive de viver. Não sabemos por certo onde começa a certeza. Quando nascemos, muitas já estão entre nós, povoando nosso mundo, inflando os homens, dando-lhes sentido de ser e de estar. A moral, a religião, a política, a cultura, tudo afinal composto de certezas que, a rigor, não entendemos sua gênese, seus dispositivos, suas configurações; sabemos, na prática irrefletida, que elas também nos servem. Servimo-nos das certezas como uma espécie de escudo, de muralha, contra tudo que nos ameaça à convicção. A convicção, aliás, no fundo, é filha legítima da certeza. Certa vez Nietzsche escreveu que o maior inimigo da verdade não é a mentira, mas a convicção. É preciso que entendamos isso de imediato: a verdade não aspira, propriamente, à certeza. Uma verdade não é um composto de certezas e, em muitos casos, a certeza opõe-se à verdade. Eis, pois, que a verdade não deseja a certeza – deseja o certo.

O mundo é inundado de certezas. Constantemente somos alvos de inúmeras certezas, de excedentes opiniões acerca do que somos, de como devemos pensar e agir, de como devemos nos moldar no mundo, com os outros e consigo mesmos. Sempre há alguém ou algum dispositivo social nos dizendo como devemos viver. Somos rebentos de uma cultura específica com códigos de conduta, moral, religião, estética, tão bem definidos que julgamos, participando dela, ser algo imutável, perene. Muitos de nós ainda não experimentamos a noção de que certeza é com certeza uma construção, e, paradoxalmente, uma construção da dúvida. Para se vencer a certeza é necessário superar a opinião. Os gregos chamavam a opinião de doxa. Por doxa devemos entender a opinião irrefletida, muitas vezes mítica, aceitas pela maioria das pessoas sem contudo refletir sobre razões de ser e estar de tais opiniões. A doxa é fundada na tradição e tem, como princípio, a disposição de não ser questionada. Contra a doxa os filósofos gregos instauraram a episteme. A episteme nasce de um processo de reflexão comprometida com a sinceridade intelectiva, promovendo o conhecimento do ser. É o conhecimento efetivo construído pela reflexão, acompanhada pela pesquisa daquilo que se pretende conhecer.

Nenhum comentário:

Postar um comentário