POÉTICA DA FINITUDE
Escreverei um dia o poema de finitude.
Não trará novidades, reinvenção do passado
ou cacos de futuro. Não dirá a cura da chaga
ou lamina que, posta, fere a lascívia.
Não eximirá palavras alentas, comoção alguma
nem funduras nem beiras.
Não exporá a extinção da pele, a supressão das eras
o armagedom dos lapsos.
Não proclamará revoluções, lonjuras humanas,
nenhum gozo, mulher ou política.
Nenhum acaso de esquina, prece alguma, leve evento
de vida humana. Nada.
Um poema de finitude
– finito, ele mesmo, enfim.
SÓ RESTA DANÇAR UM TANGO ARGENTINO
Todo acordar é uma mentira.
É falso escovar os dentes
engomar a roupa
o café o pão o leite é uma mentira.
As notícias no jornal, as crises do mundo
o vendedor na esquina
o vizinho absorto
tudo mentira.
É falso teu trabalho teu cigarro
as dívidas os consórcios
o orgasmo da tua mulher
é falso
a coroação de amigos
a celebração dos anos
o juízo final
tudo mentira
nas guerrilhas
nos partidos políticos
na confederação dos homens.
Mentira
tudo mentira.
DIACRONIA
É preciso a poesia
da diacronia.
O pão amargo
o vinho escasso
o terror da
fatia.
O pote cheio
a mesa farta
a casa
vazia.
O primeiro andar
a queda
o prazer da
agonia.
Aquela fome
aquela cede
a comida que
não sacia.
A carne e o afeto
a mulher o descaso
o gozo que não varia
O peito largo
a mágoa dada
o vinho a noite lúdica
e nenhuma
poesia.
É preciso a poesia
que tardia.
VODKA E PASSÁRGADA
Sinceramente eu esculpiria
uma estátua súbita de Hilda Hilst
transaria com a melancolia
de Clarisse.
Sinceramente
eu incendiaria os galpões antigos
da memória e certo erraria
com Jack Kerouac.
Encontraria o xamã de Morrison
e um poema suicida
para Hendrix.
Rasgaria todas as páginas de Freud
as máximas de Marx e fugiria
tão certo eu soubesse onde Passárgada estaria.
Sinceramente.
DESCOMPLETUDE
A vida toda é um gastar-se.
Esgotam-se o sumo dos tempos
as refeições as salivas
esgotam-se.
Esgotam-se as ilíadas da infância
as lidas os heroísmos
os óculos
esgotam-se.
Gastam-se os dilúvios
os quintais as estações
os enxovais
gastam-se.
A vida toda é um não bastar-se.
Não basta o beijo primeiro
o primeiro delírio
a primeira esquina.
Não basta
os móveis desarrumados
os lençóis incertos
a primeira veia
o primeiro desamor
não basta.
A vida é um gastar-se
– e não basta.