sábado, 17 de julho de 2010

Dias Anoitecidos

Por certo hoje amanheci crepusculado. Tem dias que é assim, a gente amanhece anoitecido. Talvez porque toda a existência seja, em verdade, uma longa noite, intervalada por alguma fresta tímida de sol. A verdade é que a escuridão é bem mais extensa que a luz. Quem sabe eu fique aqui, na cama, observando, passivo, a vida lá fora. Quem sabe ouvir música, ler um livro, preparar um café. Quem sabe eu não faça nada, e fique assim, como estou, inerte e puro, imóvel em minha noiticidade. Mas não acenderei a luz. Já disse, não acenderei a luz. Embora seja manhã, faz escuro em meu quarto. As sombras nas paredes formam estranhas figuras. Busquei imaginá-las, supô-las, buscar algum traço reconhecível, à maneira de como fazemos com as nuvens. Por um momento tive a impressão de que eram monstros, aqueles que permeavam meus medos ingênuos de quando eu criança. Pensei em pessoas distantes. O que andará fazendo a tia do primário? A merendeira da creche. Meu avô que jamais conheci. Há certamente muita angústia ver pessoas anônimas. Elas parecem tão distantes e disformes. Tímidas ou evasivas formam uma massa heterogênea na multidão. As filas, as estações de trem, os comícios, insinuam anônimos imprevisíveis. Haverá algum terrorista? Um pedófilo, um deputado, uma prostituta. A massa nivela a moral. Como não ter piedade de todas aquelas faces anoitecidas? Sim, anoitecidas como a minha agora, pensando tudo isso. As pessoas anônimas assemelham-se às sombras que minhas paredes revelam. Julguei que todas elas estavam aqui, no quarto, fazendo mais sombra. Mas em dias anoitecidos é preciso solidão. Uma solidão necessária, tal como a do parto, ou da morte. Afinal, chegamos ao mundo do mesmo modo que partimos: sozinhos. E sozinho, anoitecido, acordei hoje. Juntarei as pálpebras e dormirei, resoluto que acordarei a noite, amanhecido.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Todo Escritor é um Labirinto





Jorge Luis Borges tinha razão. É preciso espelhos, máscaras, labirintos. Qual escritor nunca se perdeu nesse ínterim? Esta tríade profana das lucubrações literárias permeia a alma mais sutil de todo homem que se atreve a arrogância mística de compor palavras. Compor verbo é supor a perda de sentido. Sim. Primeiro escrevemos, depois significamos. O significado, todavia, é sempre objeto ausente. A semiótica é inútil. A hermenêutica falha. Todo devaneio verbal é justo se a palavra – verbo carnificado - supor a perda de caminho. O caminho-sentido, o caminho-espelho. Todo escritor, por certo, não escreve para encontrar a si mesmo. A palavra só horizonta o indefinido. É para esquecer de si mesmo que o homem escreve. Toda a literatura é um apelo ao esquecimento. À desmemoria. – Autopsicografia? Fernando Pessoa tecia o esquecimento de si. Há, pois, entre a literatura e a memória uma antiga inimizade. A palavra literária nutre-se do esquecimento, do silêncio, da mudez que precede cada poema, cada conto, cada romance, toda interlocução. É preciso espelhos, máscaras, labirintos. O espelho não supõe a reprodução de minha imagem. Isso é engano. Supõe, no fundo, a falsificação de mim mesmo. Uma falsificação dupla, plural. O objeto refletido não sou eu; como também não sou eu a matriz do reflexo. Do mesmo modo, minha literatura-espelho não me reflete. Meu verbo nada diz de mim. Antes, supõe a falsificação de meus dramas, de minha finitude, de minha carne. Não obstante, meu verbo é verdadeiro. Eu escrevo como um espelho, me desfaço como uma máscara e me mostro, sim, como um labirinto.

domingo, 4 de julho de 2010

...Do lado de dentro não há avesso...